'Artista de rua não é camelô', dizem profissionais de estátua viva

Estatuístas afirmam que a calçada é o melhor palco para sua arte.

Diariamente, artistas precisam driblar o preconceito do público e da polícia.



“Azê, vou montar e começamos juntos”, diz Gladys Wosiak, 25. Ao meio-dia, em uma quarta-feira de calor e sol, no encontro da rua Direita com a Quintino, no cento de São Paulo, ela e o colega de trabalho Antônio Carlos Silva, 47, que pede para ser chamado apenas de Azerutan - nome artístico que significa a palavra “natureza” lida de trás para frente - ajustam cenário, púlpito, figurino e maquiagem no meio da multidão, para, enfim, dar início aos trabalhos.
Sem constrangimento, o calçadão lotado vira camarim e palco. Azerutan troca de roupa e empasta seu rosto com uma mistura de tintas que aproximam sua pele da textura do concreto. Ele começa a dar vida ao poeta Fernando Pessoa. Ou melhor: a uma estátua representando o escritor.
Todos os dias, eles vão para a rua, seu local de trabalho, e se preparam para um expediente que pode até parecer curto - cerca de três horas - para quem trabalha sentado e com intervalos para o café. Nem tanto para quem trabalha imóvel. Às vezes, na ponta de sapatilhas de bailarina. Idas ao banheiro ou parada para o lanche só acontecem antes ou depois das sessões.

Ao lado do colega, Gladys exibe o novo palquinho. Um caixote bem pintado com dois canos finos de PVC servem de apoio para os braços da bailarina, personagem do dia. “Se a gente fosse muito rico, ganhasse muito dinheiro, gastaria tudo com lindíssimos figurinos”, sonha Gladys, justificando o material improvisado que usou para confeccionar o suporte da estátua viva.

Não ganham muito dinheiro, e nem dinheiro constante: a renda depende do humor do público e até da chuva. Mas é o suficiente para que os estatuístas vivam de seu trabalho nas ruas. Gladys é casada, e tem um filho de 4 anos. A estátua viva complementa a renda do marido, ex-estátua e hoje designer gráfico. Azerutan vive e se sustenta sozinho, e acha "rídiculo" viver de excessos.
Embora relutem em falar sobre valores, deixam escapar que em épocas mais "parrudas", como a véspera do Natal, já chegaram a ganhar 300 reais em um dia. Quem faz evento cobra, em média, 200 reais por hora.
Gladys é uma das poucas mulheres que vivem do trabalho de estátua viva no Brasil. Seleciona personagens lúdicos e mais infantis para levar às ruas, não apenas para agradar o público, que alimenta seu cachê, mas pela insegurança. A Perséfone, uma deusa grega de visual sensual, só é incorporada em eventos. Nas calçadas, a bailarina e a camponesa são sucessos garantidos e blindados.
“Para a mulher, pode ser muito humilhante a falta de respeito e compreensão do nosso trabalho. Se um homem encosta as mãos no meu peito e tenta tirar minha concentração, esse gesto não me afeta, não me tira do prumo. Mas com a mulher é um assédio físico, moral e muito constrangedor”, diz Azerutan.




Camaradagem

No centro de São Paulo, porém, a jovem fez amizade com outros trabalhadores informais que a região abriga. Renato, conhecido como Mortadela (apelido que trouxe da temporada que passou preso), carrega no peito as tradicionais placas amarelas que ofertam a compra e venda de ouro. Virou amigo e quase um assistente da artista.

Assim que ela chega com seu carrinho, o rapaz rapidamente providencia
um banquinho para que Gladys possa se arrumar de maneira confortável, compra um chiclete, água e o que mais a colega possa precisar. “Se alguém partir pra cima deles com agressividade, a gente acaba com a graça na hora”, avisa.

A segurança do teatro a céu aberto também é garantida por outros funcionários que estão acostumados a admirar o trabalho de Gladys e Azerutan. Lado a lado, a bailarina e o Fernando Pessoa ajudam a divulgação de um trabalho único. Para que não haja concorrência entre os colegas, apenas uma caixa é colocada entre os dois artistas, logo abaixo da plaquinha: “Ao tirar foto, contribua”.
Carreira
No ramo há 17 anos, Azerutan se diz realizado com a evolução das obras. Antes de se encontrar na profissão, fez faculdade de artes plásticas e deu aula de desenho em escolas. Mas queria usar o próprio corpo para expressar o que entende como arte.

Passou a observar, via internet, o trabalho feito por estatuístas internacionais. Segundo ele, na Europa, o movimento é reconhecido e regulamentado. A qualidade dos figurinos gringos também impressiona.
Por aqui, de tanto analisar o pouco que era feito pelos artistas nas ruas, resolveu dar a cara a tapa – literalmente. Já apanhou, foi derrubado, xingado e maltratado. Por vezes, ainda tem que mudar de lugar quando a polícia acha que seu trabalho atrapalha a circulação, mas acredita que, com seus personagens, consegue promover cultura.
“Nossa cultura é Carnaval e futebol. Às vezes temos que explicar que artista de rua não é camelô. Mas não discutimos com a polícia. Pegamos nosso material e mudamos de lugar. Digo que estou mostrando para quem quiser parar um minuto pra me ver, a figura de Fernando Pessoa. Já fui muito marginalizado, mas agora, na maioria das vezes, sou aplaudido.”
Existe amor em SP
O dia a dia das estátuas é sem rotina. Só existe expediente se o tempo ajudar. Sol e clima quente são não apenas economicamente favoráveis, como necessários. A arte viva também tem prazo de validade. Os estatuístas chegam por volta das 11h no local escolhido e encerram o show até as 14h. “Mais do que isso, é desgaste para o nosso físico e para o público. Não podemos banalizar esse encantamento que conseguimos provocar”, ensina a bailarina.

Há sete anos, Gladys admirava de longe o trabalho dos artistas de rua. Planejava fazer cursos e viver em função da criatividade, mas não tinha coragem de abandonar o emprego fixo de garçonete. Rendeu-se quando conheceu Paulo Harum, hoje seu marido, que cresceu em uma família de estátuas vivas. A mãe do rapaz foi uma das precursoras do movimento no Brasil. Fazia uma congelada bruxa pelas ruas. Agora vive no litoral, e aposentou o figurino.
No começo, Gladys revela que sentia vergonha da própria falta de profissionalismo. Aprendeu observando, mas só conseguiu uma bolsa de estudos ao ganhar um concurso em um programa de televisão. Fez artes cênicas e integra um grupo de teatro independente.
Com esses colegas, estuda biomecânica para dominar a estrutura do próprio corpo, seu centro de massa e equilíbrio, ferramentas que permitiram a evolução de seu trabalho como estátua. Tais ensinamentos, inclusive, fazem com que Gladys passe horas em cima de uma sapatilha de ponta – feito conseguido por bailarinas profissionais após anos de técnica – sem nunca ter frequentado aulas da dança clássica. Fez também cursos de clown e corte e costura.
A dedicação serve para um único grande público: aquele que passa na calçada. Embora aceite alguns trabalhos em eventos, ela rechaça a “indústria cultural” que a publicidade promove. Quer que seu trabalho brilhe na rua. “Eventos banalizam a minha arte, acho uma forma grosseira de tratar a ferramenta artística. Não gosto de dar valor a publicidade. Faço, às vezes, porque é um meio de sobrevivência financeira.”
“Em qualquer lugar ou cidade, na rua, tudo acontece ao vivo.Você tem a resposta imediata do valor da sua arte. No palco, normalmente, as pessoas batem palmas, mas você não sabe se foi bem, se realmente agradou. A plateia que paga antecipadamente para ter cultura tem uma obrigação moral de agradecer só porque já comprou.”
Filão
Menos purista que a jovem, Marcelo Zaggo montou um site de estatuísmo e divulga o trabalho dos colegas, embora eles não se reconheçam como uma equipe, pois todos gostam de preservar a própria liberdade profissional. Enquanto Gladys dedica seu tempo a compor personagens nas ruas, ele passa a semana fechando contratos com empresas. Quando sobra tempo, volta para as calçadas.

“Se tenho eventos agendados, fico menos na rua. Varia muito conforme a demanda. Os eventos seguram a parte financeira, mas a rua é a expressão artística pura, crua", explica. Aniversários de 15 anos, casamentos, feiras promocionais e divulgação de empreendimento imobiliário são algumas das boas opções para incrementar a renda ao final do mês.
Competições internacionais também ajudam a levantar dinheiro, sempre revertido em novos personagens. Na Argentina, ele interpretou Carlos Drummond de Andrade em um festival de estatuísmo, mas ficou em segundo lugar. Perdeu pra Jesus. Um outro artista incorporava a figura de Jesus Cristo e arrebatou a primeira colocação. "Acho que o apelo religioso contribuiu. O Drummond era bem melhor do que Jesus", analisa.
Zaggo dá vida também a anjos, político corrupto, jogador de futebol, espantalho, pintor e sambista. Cada dia é um personagem que deixa o baú para figurar na cidade. Vive apenas do estatuísmo e resume o valor de sua profissão: “Somos criativos, autodidatas e dedicados. Não somos pedintes ou usamos a arte como alternativa ao desemprego. Estamos empregados.”
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